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Subturma 10 no Divã da Psicanálise

Blog de Direito Administrativo. 2º Ano - Turma B, Subturma 10 (2016/2017).

Subturma 10 no Divã da Psicanálise

Blog de Direito Administrativo. 2º Ano - Turma B, Subturma 10 (2016/2017).

Discricionariedade administrativa

 
A evolução do princípio da legalidade no sentido do seu alargamento e do seu entendimento material, em vez de formal, significa ser necessário um maior controlo das atuações da Administração, visto não estar apenas em causa a contrariedade à lei, mas a todo o Direito. Vejamos, então, antes do mais, como evoluiu a noção de discricionariedade da Administração no nosso país, para melhor compreendermos os seus contornos atuais. De acordo com os ensinamentos do Professor Vasco Pereira da Silva, houve quatro posições fundamentais acerca da distinção entre os poderes vinculado e discricionário, no quadro da doutrina portuguesa:

 

1) A posição clássica, marcada pelo entendimento liberal da legalidade e da separação de poderes e defendida em Portugal pelo Professor Marcello Caetano, era a de que os atos vinculados se distinguiriam dos atos discricionários, correspondendo esta discricionariedade a um espaço livre de Direito, o que implicava que os tribunais não poderiam intervir neste âmbito de "liberdade de decisão" da Administração: um ato discricionário seria, portanto, uma exceção ao princípio da legalidade e não poderia ser jurisdicionalmente controlado.

 

2) O Professor Freitas do Amaral veio, entretanto, defender que a discricionariedade não é uma exceção ao princípio da legalidade e que não há atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários, todos tendo ambas as facetas ("mistura ou combinação"), apenas sendo possível perguntar em que medida cada ato é discricionário ou vinculado. Afirma este Autor que cada ato tem, sempre, pelo menos dois elementos vinculados por lei - a competência e o fim. Assim, do seu ponto de vista, essa distinção apenas deveria fazer-se a nível dos poderes (poder discricionário e poder vinculado). O Professor Freitas do Amaral defendeu também que os poderes discricionários não poderiam ser controlados pelos tribunais, mas que todos os aspetos vinculados dos atos sim (e portanto todos os atos seriam sujeitos a controlo, nos seus aspetos vinculados).

 

3) Nos anos 80, o Professor Sérvulo Correia, por sua vez, partindo de uma distinção conhecida do Direito Alemão, veio distinguir duas modalidades de discricionariedade:

  • Margem de livre apreciação: no exercício de um poder, poderia a Administração ter esta margem de apreciação, antes ainda da decisão final,ao nível da subsunção dos factos à norma.
  • Margem de livre decisão: é a discricionariedade em sentido clássico e corresponderia, no entendimento do Professor, à possibilidade de proceder à decisão final.
 
4) A posição atual do Professor Vasco Pereira da Silva:
 
O Professor considera que não se deve associar a discricionariedade à liberdade (contrariamente às posições anteriormente expostas dos Professores Freitas do Amaral e Sérvulo Correia), pois a Administração nunca é livre, estando sempre vinculada, nas suas atuações, à prossecução do interesse público (que é o norte, guia e fim da Administração Pública, segundo expressão do Professor Freitas do Amaral) e ao Direito (nomeadamente, às normas que lhe conferem competências, não nos podendo esquecer que vigora o princípio da competência no âmbito da atuação administrativa: quae non sunt permissa prohibita intelliguntur, ou seja, "o que não for permitido é proibido"). Assim sendo, a "margem de manobra" que a Administração adquire por via da discricionariedade nunca pode ser comparada à vontade livre dos indivídios: a vontade dos órgãos públicos é, sempre, uma vontade normativa, o que justifica que a Administração fique vinculada pelos seus atos e responda por eles. Neste sentido também, o Professor Vieira de Andrade considera que a discricionariedade não é uma liberdade, mas sim uma tarefa, uma função jurídica, não podendo ser confundida com arbítrio e, consequentemente, fundar as suas decisões na sua vontade. Em suma, a Administração pratica sempre decisões jurídicas, que concretizam o ordenamento jurídico e suas escolhas no caso concreto.
 
Com efeito, esta questão prende-se com outra que a transcende: qual é o fundamento da discricionariedade da Administração? Porque existe? Já vimos que o seu fundamento não pode ser a vontade, o arbítrio, da Administração. Avança o Professor Rogério Soares que as leis "não podem ser figuração abstrata, até ao milímetro, do que irá ser cada um dos atos administrativos (...); não podem ser leis-ato-administrativo-feito-nas-nuvens, à espera de que o administrador as puxe à Terra. Nestes novos domínios, o papel da lei é o de ser um instrumento diretor e ordenador duma decisão que cabe ao 2.º poder." Por outras palavras, a discricionariedade administrativa existe pela impossibilidade prática de a lei prever e regular todas as situações da vida. Esta primeira ordem de motivos corresponde às razões práticas e também vem enunciada no Manual dos Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos. Mas a estas juntam-se razões jurídicas: a discricionariedade visa assegurar o tratamento equitativo dos casos concretos (summa iura, summa iniura). Esta ideia, conforme com aquele que pensamos ser o entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, encontramos nos escritos atualizados do Professor Freitas do Amaral, que, como veremos, adota hoje uma posição muito diferente da que outrora adotou. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos entendem que é, além das razões práticas e com elas relacionado, o princípio da separação de poderes enquanto critério de distribuição racional das funções do Estado pelos seus órgãos que conduz à limitação da densidade normativa, o que, para estes Autores, justificaria a existência de uma margem de liberdade da Administração em face do legislador e do poder judicial - difícil não será prever que o Professor Vasco Pereira da Silva não sufraga na totalidade este entendimento, pela sua alusão à liberdade, mas, como veremos adiante, outra é também a sua opinião quanto ao controlo jurisdicional do exercício de poderes (predominantemente) discricionários.
 
Devido ao ponto anterior, é seguro afirmar que o Professor Vasco Pereira da Silva se aproxima mais da posição do Professor Sérvulo Correia do que da introduzida pelo Professor Freitas do Amaral, mas veremos agora em que aspetos o Professor se distancia também desta posição:
 
Em primeiro lugar, como já afirmámos, não considera adequado o uso do termo "livre" ("margem livre (...)"), por considerar que as decisões da Administração se baseiam sempre em critérios que têm em vista a prossecução do interesse público e que não podem nunca violar normas jurídicas, quer infra, quer supralegais. De facto, o Professor entende que até estes momentos que o Professor Sérvulo Correia autonomiza, embora tenham natureza discricionária, são sempre vinculados em certa medida. A prorrogar o defendido pelo Professor Vasco Pereira da Silva, basta conferir que a tese alemã que influenciou o Professor Sérvulo Correia não se refere nunca a "liberdade" (Freiheit) ou a espaços "livres" (frei), utilizando antes o termo Beurteilspielraum, pelo que se teria tratado de um "equívoco de tradução" (1).
O Professor entende ainda que, para além das margens de decisão e de apreciação, há ainda um outro momento que precede esses dois e que o Professor Sérvulo Correia não teve em consideração: a interpretação da lei é, já de si, uma tarefa de natureza discricionária. O Professor Vasco Pereira da Silva alude a uma nova linha de pensamento, marcadamente americana, designada de Culturalista, que entende precisamente que a interpretação de textos normativos é uma realidade cultural, semelhante à interpretação de textos literários ou de partituras musicais. Parte-se da ideia de que o leitor é, sempre, um autor, criando algo novo. É também neste sentido que Balkin, Professor de Direito em Yale, afirma que o Direito é uma espécie de "arte cénica". Assim sendo, para o Professor Vasco Pereira da Silva, há três momentos de discricionariedade que pautam a atuação administrativa, mas que o Professor entende que apenas podem ser autonomizados em termos teóricos, não práticos, por constituírem uma realidade lógica, contínua e integrada, podendo até coincidir. São, no entender do referido Autor, três momentos que existem em qualquer poder, sendo cada um destes momentos, também, simultaneamente vinculado e discricionário. É por estes motivos que o Professor Vasco Pereira da Silva considera a tese defendida pelo Professor Sérvulo Correia demasiado formalista. É também por estes motivos que o Professor Vasco Pereira da Silva entende que a distinção entre discricionariedade e vinculação não se adequa aos poderes, pelo mesmo motivo que não de adequa aos atos: todos os poderes têm aspetos vinculados e discricionários, em simultâneo.
 

Por último e em jeito de conclusão, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que, tendo em conta tudo quanto se disse, os tribunais controlam integralmente o poder vinculado e os vínculos do exercício do poder discricionário. O Professor Vasco Pereira da Silva entende que todos os aspetos de um poder, quer sejam vinculados, quer discricionários, estão sujeitos a controlo jurisdicional, pois que todos esses aspetos estão subordinados ao Direito, apenas concedendo que o controlo jurisdicional será mais forte consoante vá aumentando a medida de vinculatividade de um poder. Para compreendermos melhor a posição do Professor Vasco Pereira da Silva quanto ao controlo jurisdicional a que está sujeita a Administração no exercício de poderes (predominantemente) administrativos, importa conhecer as opiniões atuais de alguns Autores quanto ao mesmo problema.

 

Vejamos, então, sucintamente, o que entende hoje o Professor Diogo Freitas do Amaral por poder discricionário da Administração. Segundo o Autor, o poder é discricionário quando o seu exercício fique entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere. Entende, portanto, que o poder discricionário não é livre, estando a escolha não apenas vinculada pela competência e pelo fim, mas também, e sobretudo, por ditames decorrentes dos princípios e regras gerais que vinculam a Administração, o que implica que o órgão administrativo fica obrigado a encontrar, de entre as escolhas possíveis, aquela que se consubstancia na melhor solução para o interesse público (na linha de pensamento de Engisch, considera que, de entre as várias escolhas legais possíveis, há um resultado que é o "único ajustado" às circunstâncias do caso concreto). O Professor Freitas do Amaral entende, hoje, portanto, que o poder discricionário não é um poder livre dentro dos limites da lei, mas sim um poder jurídico delimitado pela lei.

 

O Professor Freitas do Amaral considera também, hodiernamente, que a maioria dos poderes têm simultaneamente aspetos vinculados e discricionários (o que não corresponde, ainda, à posição do Professor Vasco Pereira da Silva, mas é sem dúvida mais próxima do que outrora). Desenvolve o Professor Freitas do Amaral que nos poderes com aspetos vinculados e discricionários, os aspetos vinculados estão sujeitos a controlo de legalidade, pelo seu exercício ilegal, e os discricionários a controlo de mérito, pelo seu mau uso. Ou seja, defende que, em rigor, não há controlo jurisdicional do poder discricionário, mas antes controlo administrativo de mérito sobre o bom ou mau uso do poder, e controlo jurisdicional de legalidade dos aspetos vinculados dos poderes (predominantemente) discricionários. Relativamente ao controlo do mérito, afirmam os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos que este engloba a apreciação da oportunidade (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público visado pelo poder legalmente conferido por lei) e da conveniência (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público, à luz dos demais interesses públicos envolvidos), o que, de acordo com o artigo 3.º/1 do CPTA, os tribunais administrativos não têm competência para julgar. Estes Professores concordam, como referido supra, que a separação de poderes implica a ausência de controlo jurisdicional da margem de discricionariedade da Administração, pois, no seu entender, a atribuição de um poder (predominantemente) discricionário a um órgão administrativo corresponde a um juízo do legislador, segundo o qual o interesse público em causa seria melhor prosseguido pela Administração do que pelo próprio legislador ou pelos tribunais.

 

Retomando a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, podemos agora afirmar que esta se aproxima daquela defendida pelo Professor Freitas do Amaral, no que respeita aos vínculos que limitam toda a atividade Administrativa (não se excluindo, portanto, a discricionária). De facto, estes Professores concordam que, hoje, os poderes discricionários não são apenas sujeitos a controlo jurisdicional quanto ao fim competência, como também, em virtude do alargamento do entendimento da legalidade, quanto aos princípios gerais da Administração Pública, quer os constantes da Constituição (artigo 266.º), quer quanto aos constantes no CPA e legislação avulsa. Estes princípios são vínculos autónomos, não surgindo da circunstância concreta de existência de um poder discricionário específico.

No artigo 266.º da CRP, encontramos referência aos seguintes princípios:

  • Princípio da imparcialidade
  • Princípio da igualdade
  • Princípio da proporcionalidade
  • Princípio da boa fé
  • Princípio da justiça

O princípio da proporcionalidade, a que está sujeita a Administração, é particularmente expressivo do alargamento da aceção da legalidade e consequente reforço do controlo jurisdicional a que estão sujeitos os poderes discricionários. Isto porquê? Porque, controlando a necessidade, a adequação e o não prejuízo excessivo, acaba-se controlando o próprio modo como o poder discricionário é exercido. Se uma decisão for desnecessária, essa decisão é ilegal e como tal pode ser conhecida de um tribunal. Significa isto que a necessidade e adequação deixam de ser problemas de mérito e transformam-se em problemas de legalidade.

Também o princípio da justiça releva em sede de discricionariedade, pois permite considerar ilegal uma decisão materialmente injusta, quer se trate de uma decisão realizada no âmbito de poderes vinculados, quer discricionários.

 

Artigos relevantes: 266.º/2 CRP; 3.º/1 e 4.º CPA; 3.º/1, 71.º/2 e 95.º/3 CPTA

Normas que atribuidoras de poderes discricionários (enumeração exemplificativa): artigos 3.º/2, 145.º/3, 100.º/2, 157.º/1, 174.º/2 CPA; art. 8.º DL n.º 252/92, de 19 de Novembro.

Jurisprudência:

Bibliografia:

 

Beatriz de Macedo Vitorino

Aluna Nr. 28191

Direito Administrativo - episódios da vida pós-social

Com a abertura dos mercados a nível global, nos epílogos do século passado, simultaneamente causa e consequência do desenvolvimento tecnológico e dos processos produtivos, todos os níveis da vida das pessoas e dos Estados abriram portas a um novo paradigma. Desde deslocalização de empresas, fragmentação do processo produtivo, novas necessidades dos particulares, a necessidade de desburocratização e a exigência de eficácia, eficiência e celeridade inundaram o Estado-Administração como verdadeiros desafios carentes de resolução imediata. O Estado-prestador (cada vez mais prestador: muito longe parece já estar a primeira geração de direitos fundamentais, que entretanto, não só cresceram e assumiram novas e mais faces, com o reconhecimento dos direitos sociais e económicos dos cidadãos, como assumiram a vanguarda das preocupações estaduais, assumindo-se como primeiro e último objetivo do Estado), o Estado que assumiu como seu dever assegurar os direitos dos cidadãos, e afirmou estar, aí, a sua legitimação; aí, o fundamento dos seus poderes; aí, o seu único motivo de ser... Esse Estado sentiu a dificuldade de continuar a assegurar esses mesmo direitos, num mundo em contínuo crescimento: interconectado, interrelacionado, acordado para novos desejos, que num ápice passam a necessidades, e, como tal, a direitos. E então, o Estado metamorfoseou-se como pôde: de Estado Social, passou a Estado Pós-Social -- mas sempre "de Direito".

 A Administração prestadora conseguiu, assim, não renegar todo o seu crescimento, desde que nasceu no crepúsculo do Estado Liberal (nem mesmo esqueceu os seus traumas, como indica o Professor Vasco Pereira da Silva). Mas como fez isto? Vendo a rapidez com que o mundo se desenvolvia, o Estado quis devolver ao mundo parte das suas tarefas, mas sem nunca as tirar de debaixo de olho. E então, num mundo em que as relações económicas são ditadas pelo lucro, o Estado importa-se agora com garantir, prima facie, que as funções administrativas sejam lucrativas o bastante para aliciarem os particulares a fazerem parte delas e a prossegui-las. A nova grande tarefa da Administração é tornar o interesse público lucrativo, criar nos particulares o desejo de fazer parte da máquina prestadora, da márquina-providência, embora à margem da "máquina". Afirma-se, portanto, como Administração Infraestrutural. O ato administrativo unilateral perdeu-se, como alude o Professor Vasco Pereira da Silva, que se propôs procurá-lo, e o paradigma hoje é o do ato multilateral, o contrato. Recuperaremos esta ideia depois de explorarmos alguns tópicos a ela periféricos.

 

Em matéria de interrelacionamento e de interdependência, referimos já, noutra publicação (1), a evolução do Direito Administrativo no sentido da europeízação: afinal, a Europa, ainda não pronta para se reformar, assumiu ela própria, face aos cidadãos, algumas das promessas dos próprios Estados. Houve quem dissesse que o Direito Administrativo do novo século é Direito Europeu concretizado, por consagrar as suas grandes opções, em matérias variadas, respeitantes ao ambiente, ao consumo, ao desenvolvimento social das populações, para garantir que na Europa não há excluídos da globalização; e ainda para consagrar o direito à administração, que, ele próprio, surgiu como direito humano à escala universal. De facto, é através do Direito Administrativo que o Direito Europeu consegue fazer valer a sua, penetrando nos Estados e fazendo-se sentir nas vidas dos chamados cidadãos europeus. No entanto, este Direito Europeu rege-se pelo princípio da subsidariedade: fundamentalmente, a Europa só se imiscui, quando o Estado não parece conseguir levar a cabo a tarefa visada.

Fala-se ainda em Direito Administrativo Global. Afinal de contas, o cidadão nacional, depois cidadão europeu, retoma a qualidade de cidadão do mundo, mas não já na aceção com que Sócrates (o Antigo) o disse: as pessoas, cujos direitos já vimos serem hoje a principal preocupação dos Estados, são sujeitos de Direito Internacional e podem, inclusive, queixar-se de atuações (ou omissões) do seu Estado, perante tribunais internacionais. Podemos encontrar referência a este Direito Global em Sabino Cassese (2) e (3) e em publicação recente do Dr. Francisco de Abreu Duarte (4). Este Direito Global, em grande parte administrativo, é caracterizado como sendo constituído por relações horizontais entre sujeitos que são simultaneamente Administrador e Administrado (de facto, o regulador é, em regra, vinculado pelas regras que criou, por via das convenções internacionais: ou, melhor, o administrado transforma-se em contribuinte,em demandante e reivindicador - neste sentido, o Professor Alberto Romano), imperando uma confusão entre Direito Público e Privado, de difícil destrinça. A mesma tendência, como faz questão de notar o Dr. Francisco de Abreu Duarte, se verifica no Direito Administrativo Estadual, em que cada vez mais o administrado toma em mãos tarefas administrativas, em vista do interesse público. É válida, para aqui, a asserção de Sabino Cassese, de que o Direito Administrativo funciona em rede, quer dentro dos Estados, quer à escala global. Podemos, ainda, retirar das lições destes Autores, a ideia de que também o Direito Global é, de certa forma, subsidiário, pois existe e é necessário (segundo a Professora Maria Luísa Duarte, existe porque é necessário), porque o Estado não tem capacidade ("States are not able (...)") para solucionar questões que o ultrapassam em importância, recursos e jurisdição. O Professor Fausto de Quadros reconduz, em última instância, esta necessidade para o Ius Cogens e, em particular, para a garantia dos direitos fundamentais da Pessoa Humana, segundo referencia o Dr. Francisco de Abreu Duarte.

 

No âmbito estadual, como dizíamos, várias tarefas administrativas foram sendo assumidas pelos particulares, falando alguns autores numa "fuga para o Direito Privado" (esse o título da tese de doutoramento da Professora Maria João Estorninho). Encontramos várias concretizações da ideia, que referiremos agora. As entidades públicas empresariais, embora sejam verdadeiras pessoas coletivas públicas de Direito Público, criadas pelo Estado para prosseguir funções do Estado, integram o setor empresarial e, nesse sentido, regem-se pelo Direito Privado (e, nomeadamente, pelas regras da concorrência) no âmbito das suas relações comerciais. Para além disso, embora as suas atribuições e as competências dos respetivos orgãos encontrem legitimação na lei, a teoria dos poderes implícitos permite que nem toda a atividade destas pessoas coletivas esteja prevista na lei, com base em duas ideias estruturantes: (a) quem pode o mais, pode o menos; (b) a quem é conferida uma determinada atribuição, é também possível praticar as atividades que resultem na sua concretização. Há também pessoas coletivas de Direito Privado que prosseguem o interesse público, como é o caso de algumas sociedades comerciais, associações e fundações: é a Administração Pública sob forma privada. É ainda conferida a prossecução de determinadas funções administrativas a entes privados, funções essas que não perdem a sua natureza pública, embora sob gestão privada: neste sentido, o Professor Vasco Pereira da Silva afirmou, numa das suas aulas, que administrar se transformou numa tarefa de gestão. À transferência de atribuições para pessoas coletivas privadas de fins não lucrativos dá-se o nome de delegação de atribuições (embora não se possa falar, summo rigore, em delegação de poderes), enquanto à transmissão de atribuições para pessoas coletivas privadas de fins lucrativos se dá o nome de concessão: em ambos os casos, a autorização do concessionário/delegado é sempre necessária, quer seja mediante a aceitação de um ato administrativo unilateral, quer seja por via de um contrato administrativo (modalidade que, infelizmente, não poderemos desenvolver para já).

 

Não deveria haver, aqui, qualquer incompatibilidade de Direitos. Quanto muito, concurso: certas entidades seriam regidas pelo Direito Público, nuns casos, e pelo Direito Privado, noutros.Tudo isso viria regulado pelas respetivas leis orgânicas, estatutos e atos ou contratos constituintes. Não deveria, portanto, haver, nem confusão, nem mestiçagem ou miscigenação (5). Não se deveria sequer falar em Direito Administrativo Privado, como Wolff faz. Porquê? Porque tudo isso gera um clima de incerteza que a cooperação entre Administração e administrados não criaria necessariamente. De facto, se já passou o tempo da Administração cujo Direito serve para a blindar a ofensas e para a tornar quase que inimputável (Administração privilegiada, autoritária), não é hoje, através da aplicação do Direito Privado, que isso se pode retomar. No entanto, apercebendo-nos de que não é tão linear quanto isto e partilhando das hesitações (e ceticismo) da Professora Maria João Estorninho, terminamos este pequeno exercício de reflexão com um olhar de desconfiança sob esta nova realidade, a que Prosper Weil se refere como um "espetáculo desorientante". Nesse sentido, concluimos com algumas das ambiguidades e riscos desta forma de organização que a Professora Maria João Estorninho refere na sua tese:

  • Objetivos velados e subreptícios, de tentar ultrapassar as vinculações jurídico-públicas a que a Administração de outro modo estaria sujeita (Achterberg considera que se consegue, assim evitar o “controlo democrático do ente-mãe”): passa-se, assim, de uma fuga inocente a uma fuga “consciente e perversa” para o Direito Privado, que pode deixar os indivíduos desprotegidos contra Administração;
  • Regime jurídico de natureza mista, de direito privado e de direito público;
  • A proclamada autonomia destas entidades acaba por ser algo ilusória: “ou seja, nem há verdadeira autonomia, que levaria a que funcionassem os mecanismos de controlo normais do Direito Privado, em especial do Direito Comercial, nem, por outro lado, se reconhece que estas entidades são afinal ainda entidades públicas, sujeitas aos controlos tradicionais jurídico-públicos”.
  • Para Maria João Estorninho, a Administração Pública atinge assim um retrocesso: “no Estado Pós-Social a Administração volta a ter uma <<cara má>> e uma <<cara boa>>, à semelhança do que acontecia no Estado Absoluto. Só que, ao contrário do que sucedia no período da Monarquia Absoluta, onde apenas no âmbito jurídico-privado havia a sujeição da Administração ao Direito, no Estado Pós-Social verifica-se precisamente o inverso e a <<cara má>>, a <<faceta perversa>> desta Administração Pública <<esquizofrénica>>, revela-se quando ela opta por atuar segundo o Direito Privado e foge às suas vinculações jurídico-públicas”;
  • Promiscuidade entre Direito Público e Privado à Confusão prática entre as respetivas formas de organização, de atuação e de responsabilidade;
  • Problema da redefinição das fronteiras orgânicas da Administração Pública.

 

Beatriz Vitorino

Aluna nr. 28191

Artigos 44.º a 50.º do CPA: A delegação de poderes

Artigo 44.º CPA

Delegação de Poderes

1 - Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um ato de delegação de poderes, que outro órgão ou agente da mesma pessoa coletiva ou outro órgão de diferente pessoa coletiva pratique atos administrativos sobre a mesma matéria. 
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se agente aquele que, a qualquer título, exerça funções públicas ao serviço da pessoa coletiva, em regime de subordinação jurídica. 
3 - Mediante um ato de delegação de poderes, os órgãos competentes para decidir em determinada matéria podem sempre permitir que o seu imediato inferior hierárquico, adjunto ou substituto pratiquem atos de administração ordinária nessa matéria. 
4 - O disposto no número anterior vale igualmente para a delegação de poderes dos órgãos colegiais nos respetivos presidentes, salvo havendo lei de habilitação específica que estabeleça uma particular repartição de competências entre os diversos órgãos. 
5 - Os atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes valem como se tivessem sido praticados pelo delegante ou subdelegante.

 

A delegação de poderes corresponde a uma modalidade de repartição de competências dentro de uma mesma pessoa coletiva (desconcentração) ou de transferência entre pessoas coletivas (na delegação intersubjectiva, há desconcentração em sentido impróprio, pois não ocorre descentralização, visto não haver transferência de atribuições, mas, antes, de competências). Das delegações havidas dentro de uma mesma pessoa coletiva, pode distinguir-se as hierárquicas das não hierárquicas, uma vez que, para haver delegação de poderes no interior de uma pessoa coletiva, tem de haver uma prévia relação de supra-infraordenação: quer seja ela hierárquica, quer seja de coadjuvação ou colegialidade. No entanto, a delegação de poderes congela, no âmbito dos poderes delegados, qualquer outra relação jurídica anteriormente existente entre o delegante e o delegado, não obstante os novos poderes conferidos ao delegante (nomeadamente, o de quase-direção). É, pelo menos, este o entendimento do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, e que nós sufragamos. Diferentemente, o Professor Diogo Freitas do Amaral defende que se mantém a relação de hierarquia.

A desconcentração resultante da delegação de poderes tem como objetivo a desburocratização e a aproximação das populações, tendo sempre em vista as metas últimas da boa administração e eficiência administrativa: parte-se, portanto, do pressuposto de que uma maior especialização das funções favorece uma maior celeridade na atividade administrativa.

O artigo 44.º do CPA apresenta, como aponta o Professor Diogo Freitas do Amaral, não apenas uma noção de delegação de poderes (n.º 1), como também uma norma de habilitação genérica (n.º 3: são admissíveis os atos de delegação de poderes para a prática de atos de administração ordinária, por parte dos órgãos competentes relativamente aos seus imediatos inferiores hierárquicos, adjuntos ou substitutos). Esta norma de habilitação genérica visa facilitar a desconcentração administrativa, libertando os órgãos dirigentes da Administração Pública das tarefas de gestão corrente. No n.º 4 do mesmo artigo, está ainda contida uma outra norma de habilitação de delegação de poderes por parte dos órgãos colegiais nos respetivos presidentes, a menos que haja uma lei de habilitação específica em sentido contrário. O Professor Diogo Freitas do Amaral vê aqui uma expressão da tendência do CPA de valorizar a função dos presidentes dos órgãos colegiais.

Por administração ordinária, entende-se os atos de gestão corrente, i. é, aqueles que se destinam imediatamente a assegurar a continuidade do serviço, ainda que não dotados de habitualidade e normalidade, e mesmo que tenham áreas de discricionariedade, desde que não tenham caráter inovador. Por sua vez, administração extraordinária abrange os atos definitivos, não totalmente vinculados (não há total vinculação de pressupostos e elementos, pela lei), e que sejam inovadores ou alterem o comportamento precedente da pessoa coletiva em que se insira o órgão. São, portanto, as verdadeiras decisões de fundo, que os atos de gestão corrente procuram executar e complementar. Daí que os atos da administração extraordinária não venham visados no n.º 3, mas sim no n.º 1: para haver delegação destes poderes, tem que haver uma norma legal habilitante específica, não genérica, e dotada de um satisfatório grau de pormenorização (o que decorre da reserva de densificação normativa).

A delegação ou subdelegação dá-se de um órgão administrativo (delegante ou subdelegante), pois só um órgão tem competências, para um órgão ou agente da mesma pessoa coletiva, ou órgão de pessoa coletiva diferente. O agente a que sejam delegadas competências passa a ser tratado como um órgão, no âmbito do exercício dessas competências.

Do n.º 5 do mesmo artigo decorre que os atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes valem como se tivessem sido praticados pelo delegante ou subdelegante. De uma delegação de competências, dá-se a transferência de exercício, bem como de gozo e titularidade (seguimos neste ponto a orientação do Professor Marcelo Rebelo de Sousa) de faculdades incluídas em poderes funcionais que integrem a competência de um órgão administrativo, cuja competência foi previamente atribuída por lei, assim como a possibilidade de delegar essas mesmas faculdades. Diz-se que o delegado tem competência derivada ou indirecta, uma vez que não é adquirida por lei, mas antes por ato de outro órgão administrativo. Ainda assim, na prática de atos que visem a concretização das competências delegadas, o delegado ou subdelegado fá-lo em nome próprio e por conta própria, pelo que esses atos são imputados à sua esfera jurídica.

Artigo 45.º

Poderes indelegáveis

Não podem ser objeto de delegação, designadamente: 
a) A globalidade dos poderes do delegante; 
b) Os poderes suscetíveis de serem exercidos sobre o próprio delegado; 
c) Poderes a exercer pelo delegado fora do âmbito da respetiva competência territorial.

 

O artigo 45.º proíbe a delegação da globalidade dos poderes do delegante (alínea a)), dos poderes susceptíveis de serem exercidos sobre o próprio delegado (alínea b)), bem como dos poderes a exercer pelo delegado fora do âmbito da respetiva competência territorial (alínea c)). O Professor Marcelo Rebelo de Sousa distingue os poderes indelegáveis por lei, como os de revogação da delegação, dos indelegáveis por natureza, como, no caso de prévia relação de hierarquia, o poder disciplinar. Alguns destes poderes, no entanto, como é o caso dos poderes decorrentes de relações de infra-supraordenação, são somente relativamente indelegáveis, não absolutamente, como os poderes previstos na alínea b) no artigo em análise.

Artigo 46.º

Subdelegação de poderes

1 - Salvo disposição legal em contrário, o delegante pode autorizar o delegado a subdelegar. 
2 - O subdelegado pode subdelegar as competências que lhe tenham sido subdelegadas, salvo disposição legal em contrário ou reserva expressa do delegante ou subdelegante.

 

Como temos vindo a observar, a lei contempla a possibilidade de haver consecutivas subdelegações de poderes. No artigo 46.º, encontramos disposições respeitantes à subdelegação de poderes, que o mesmo é dizer, delegação de poderes derivada. Para que o delegado subdelegue, é necessário que o delegante autorize essa subdelegação (algo que pode ou não fazer, consoante melhor se lhe aprouver). Por seu turno, pode o subdelegado subdelegar, sem que para tal seja requerida autorização por parte do delegante ou subdelegante, só não sendo possível quando haja disposição legal em contrário ou reserva expressa por parte do delegante ou subdelegante. Portanto, enquanto o silêncio do delegante não basta para que possa o delegado subdelegar, esse mesmo silêncio do delegante e subdelegante(s) não obsta às subdelegações de 2.º grau e seguintes. O legislador foi, aqui, mais restritivo quanto à subdelegação de 1.º grau, o que não agradou todos os Autores e, nomeadamente, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, que entende poder, esta opção legislativa, conduzir a um esbatimento da responsabilidade na decisão de delegar poderes. Afigura-se, efetivamente, uma opção um tanto ou quanto contraditória, tendo em conta a natureza “intuitu personae” da delegação de poderes.

Artigo 47.º

Requisitos do ato de delegação

1 - No ato de delegação ou subdelegação, deve o órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou subdelegados ou os atos que o delegado ou subdelegado pode praticar, bem como mencionar a norma atributiva do poder delegado e aquela que habilita o órgão a delegar. 
2 - Os atos de delegação ou subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação, nos termos do artigo 159.º

 

Constam do artigo 47.º os requisitos do ato de delegação ou subdelegação de poderes. Do n.º 1, decorre que deve o órgão delegante ou subdelegante especificar positivamente, através de enumeração taxativa, quais os poderes objeto de delegação ou subdelegação, ou quais os atos que o delegado ou subdelegado passará a poder praticar. Não pode o delegante ou subdelegante recorrer aqui a cláusulas gerais, ou a enumerações exemplificativas. Decorre ainda do mesmo número que o delegante ou subdelegante deve mencionar, no ato de delegação, a norma atributiva do poder delegado ao órgão originariamente competente, bem como a norma que o habilita a delegar esse poder. A falta de qualquer destes requisitos determina a invalidade do ato de delegação ou subdelegação, o que, por sua vez, implica que quaisquer atos exercidos pelo delegado no âmbito de delegação inválida de poderes, são também inválidos, tendo em conta que o delegado é incompetente para exercer tais poderes.

Deste n.º 1, podemos tirar a ilação que uma delegação ou subdelegação de poderes pode ter por objeto, ou poderes, ou a prática de atos específicos. Outra observação suscitada por este número resulta da letra da lei, ao referir “os atos que o delegado ou subdelegado pode praticar”. De facto, convém esclarecer que o órgão ou agente a quem é delegado um poder (ou vários) ou a prática de um ato (ou vários) não se pode desobrigar: trata-se de poderes funcionais, aos quais o delegado ou subdelegado fica vinculado, nos mesmos termos em que o artigo 36.º prevê a irrenunciabilidade das competências conferidas por lei. A este propósito, podemos também chamar à colação o artigo 50.º, uma vez que não se encontra a desvinculação unilateral por parte do delegado prevista como umas das causas de extinção da delegação. O ato de delegação tem, portanto, caráter impositivo, sendo um ato administrativo unilateral que não carece de aceitação por parte do destinatário para ser eficaz.

Há mais um requisito, constante do n.º 2 do mesmo artigo, que o ato de delegação ou subdelegação tem que preencher: a publicação, nos termos do artigo 159.º, portanto, no Diário da República ou na página oficial da entidade pública, e na Internet, no sítio institucional da entidade em causa, no prazo de 30 dias. A falta de publicação determina a ineficácia do ato de delegação ou subdelegação, o que resulta na invalidade dos atos praticados pelo órgão ou agente delegado, no âmbito da delegação ineficaz.

Artigo 48.º

Menção da qualidade de delegado ou subdelegado

1 - O órgão delegado ou subdelegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação. 
2 - A falta de menção da delegação ou subdelegação no ato praticado ao seu abrigo, ou a menção incorreta da sua existência e do seu conteúdo, não afeta a validade do ato, mas os interessados não podem ser prejudicados no exercício dos seus direitos pelo desconhecimento da existência da delegação ou subdelegação.

 

O artigo 48.º contém o dever do delegado ou subdelegado, na prática dos atos delegados, de mencionar a delegação ou subdelegação, o que implica ainda a identificação do órgão delegante. À falta de menção, ou na presença de menção incorrecta, a validade do ato não é afetada, mas os interessados não podem ser prejudicados no exercício dos seus direitos pelo desconhecimento da delegação ou subdelegação, nomeadamente no que respeite à utilização de garantias graciosas ou contenciosas. Para além disso, os atos praticados pelo delegado no âmbito da delegação de poderes devem respeitar todos os requisitos legais e os compreendidos no ato de delegação de poderes (requisito legal por acréscimo). Para além disso, os atos realizados na prática da delegação só são válidos se também o ato de delegação tiver sido válido e eficaz (pressuposto objetivo adicional).

Artigo 49.º

Poderes do delegante ou subdelegante

1 - O órgão delegante ou subdelegante pode emitir diretivas ou instruções vinculativas para o delegado ou subdelegado sobre o modo como devem ser exercidos os poderes delegados ou subdelegados. 
2 - O órgão delegante ou subdelegante tem o poder de avocar, bem como o de anular, revogar ou substituir o ato praticado pelo delegado ou subdelegado ao abrigo da delegação ou subdelegação.

 

De acordo com o artigo 49.º, o órgão delegante ou subdelegante tem diversos poderes, o que se coaduna com o artigo 45.º (o órgão delegante nunca poderia delegar a globalidade dos seus poderes, porque, não só nascem novos poderes na esfera do delegante no momento da delegação, como estes poderes são suscetíveis de ser exercidos sobre o próprio delegado). Assim, o delegante, ou subdelegante, pode emitir diretivas ou instruções vinculativas para o delegado ou subdelegado sobre o modo como exercer os poderes delegados ou subdelegados. Tem ainda o poder de avocar, bem como o de anular, revogar ou substituir o ato praticado pelo delegado ou subdelegado ao abrigo da delegação ou subdelegação, por motivos de ilegalidade ou demérito do mesmo. Também o delegado pode, enquanto decorrer a delegação, revogar os atos que haja praticado. Como veremos a seguir, o delegante pode também fazer cessar a delegação, revogando o próprio ato de delegação.

Relativamente ao poder de avocação do ato delegado, a doutrina divide-se. Coloca-se a questão de saber se pode haver avocação tácita, ou seja, de o delegante avocar o ato, praticando-o, e fazendo assim cessar a delegação (no caso de esta só compreender a prática de um ato) ou de apenas chamar a si a prática de um ato em concreto (caso a delegação compreenda mais poderes). Entendemos que, se o delegante, a partir do momento do ato de delegação, se torna incompetente para praticar os atos delegados (visto não haver no nosso ordenamento competências simultâneas), terá que avocar primeiro, e só depois praticar o ato: a própria prática do ato não corresponde à avocação, mas sim a um ato incompetente e, portanto, inválido.

O delegante pode ainda decidir recursos hierárquicos impróprios que tenham como objeto ato do delegado. Alguns Autores referem ainda o poder de supervisão e inspeção, tendo em conta o juízo de mérito que o delegante pode fazer quanto aos atos do delegado no âmbito da delegação de poderes. O delegante pode ainda, como já observámos, autorizar o delegado a subdelegar.

Artigo 50.º

Extinção da delegação ou subdelegação

A delegação e a subdelegação de poderes extinguem-se: 
a) Por anulação ou revogação do ato de delegação ou subdelegação; 
b) Por caducidade, resultante de se terem esgotado os seus efeitos ou da mudança dos titulares dos órgãos delegante ou delegado, subdelegante ou subdelegado.

 

O artigo 50.º refere as causas de extinção da delegação ou subdelegação. São elas a anulação ou revogação do ato de delegação ou subdelegação, e a caducidade, quer por se terem esgotados os seus efeitos (pelo decurso do prazo, ou por ocorrência de condição extintiva, como a revogação da própria lei habilitante ou da lei que conferia competência ao órgão delegante), quer por mudança dos titulares dos órgãos delegante ou delegado, subdelegante ou subdelegado, visto o ato de delegação ser um ato “intuitu personae”. Esta natureza intuitu personae do ato de delegação é uma exceção ao caráter tendencialmente impessoal da organização administrativa num Estado de direito. O facto de o ato de delegação ser, a todo o momento e sem carecer de fundamentação, revogável pelo delegante faz com que a delegação de poderes seja precária: o delegante perde as competências delegadas, mas só enquanto vigore a delegação, que pode ser vigorada tão discrionariamente como é criada por ato de delegação.

 

Beatriz de Macedo Vitorino

Aluna Nr. 28191

Europeízação do Direito Administrativo

O Direito da União Europeia é um ramo de Direito jovem, remontando as suas origens aos anos 50. Teve, portanto, ao tempo da sua conceção e progressiva elaboração dogmática, toda uma cultura jurídica como influência. Aliás, várias culturas jurídicas. Podemos, de facto, afirmar que o Direito Europeu (inicialmente denominado Direito Comunitário, expressão que hoje deve ser descartada) é o produto de uma profusa miscigenação de ordenamentos jurídicos. Uma das suas mais marcadas influências foi o Direito Internacional Público, a Ordem Jurídica da Comunidade Internacional, pela adoção dos tratados como fonte de Direito (na verdade, são a principal fonte jurídica da União, sendo somente suplantada pelo jus cogens). Para além do DIP, dois ramos de Direito contribuíram também para a construção do Direito da União: o Direito da Economia e o Direito Administrativo.

Será deste último, ao qual o Professor Fausto de Quadros reconhece a mais intensa contribuição à construção dogmática e científica do Direito da União, que nos ocuparemos a partir deste ponto. Otto Bachof afirmou que seria correto identificar o Direito Europeu como, essencialmente, um Direito Administrativo da Economia, ao que o Professor Fausto de Quadros acrescenta que, então, a Comunidade Europeia poderia ser identificada como uma Comunidade de Direito Administrativo. Prende-se isto com diversos fatores, nomeadamente históricos, que referiremos e tentaremos esclarecer. Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva vê o Direito Administrativo como Direito Europeu concretizado.

Trata-se,como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, da dupla vertente da europeízação do Direito Administrativo: a da criação de um Direito Administrativo a nível europeu, e a da convergência dos sistemas de Direito Administrativo dos Estados-membros da União. Avança, a este propósito, que, a uma dependência administrativa do Direito Europeu, soma-se uma dependência europeia do Direito Administrativo. Veremos com mais pormenor como se coaduna esta relação de influência recíproca entre Direito Europeu e Ordens Jurídicas estaduais.

 

Influência dos Direitos estaduais na construção do Direito Europeu:

Segundo o Professor Fausto de Quadros, o Direito Administrativo influencia os tratados comunitários, tendo vindo a marcar predominantemente a tipologia dos atos de Direito derivado, a organização e funcionamento da Comissão como órgão executivo, a aplicação do Direito da União Europeia pela própria União e pelos Estados-membros, o regime da responsabilidade extracontratual da União Europeia, bem como o Contencioso da União.

A doutrina é pacífica ao reconhecer a importante contribuição da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia para esta influência do Direito Administrativo no Direito Europeu e, consequentemente, para a coerência interna do Direito da União. Terá sido o Tribunal de Justiça a fazer aplicação dos princípios gerais de Direito Administrativo dos Estados-membros, e em especial dos sistemas jurídico-administrativos francês (inspirado na jurisprudência do Conselho de Estado, o supremo tribunal de justiça administrativo francês) e alemão. É por este motivo que a doutrina se refere por vezes à criação do Direito Europeu como uma criação de natureza pretoriana. Um fenómeno curioso e que tem sido objeto de estudo de doutrina recente é a relação de recíproca influência que daqui advém: após haver esta apropriação por parte da União de princípios gerais dos Direitos Administrativos estaduais, estes princípios e, portanto, o próprio Direito Administrativo é reelaborado e densificado a nível comunitário, sendo posteriormente devolvido aos sistemas jurídicos estaduais e aos tribunais nacionais, contribuindo deste modo para aquilo a que os Autores chamam de “reconstrução” ou “reelaboração” dos Direitos Administrativos nacionais (o Professor Vasco Pereira da Silva faz alusão à imagem do filho que combina as melhores qualidades de ambos os pais - no fundo, superando-os). Por via desta conformação (“harmonização”) dos sistemas jurídico-administrativos estaduais com o Direito da União, dá-se simultaneamente uma convergência entre as diversas Ordens Jurídicas dos Estados-membros.

Este fenómeno constante de elaboração jurídica pretoriana tem permitido uma densificação e aprimoramento do procedimento administrativo da União.

Aplicação do Direito Europeu a nível estadual:

As relações de influência recíproca a nível administrativo, entre a União Europeia e os Estados-membros, observa-se ainda com clareza nas realidades estaduais, em que a aplicação do Direito Europeu se dá em larga medida por via administrativa. A este respeito, importa referir que, muito embora a vigência do princípio da subsidiariedade e do princípio pelo respeito da identidade (nomeadamente, jurídica) nacional dos Estados, o princípio da uniformidade (ou da coerência global) da Ordem Jurídica da União (conjugado por – e em função de – outros princípios europeus, como os da lealdade comunitária e da cooperação leal [artigo 4º/3 do Tratado da UE], da integração e da não-discriminação) significa a obrigatoriedade de conformação dos Direitos estaduais com o Direito Europeu, que assim reclama o seu primado sobre as OJ estaduais, o que tem tido maior expressão no ramo de Direito Administrativo, em particular nos domínios do ato administrativo, dos contratos públicos, dos serviços públicos, das empresas públicas, da responsabilidade extracontratual da Administração, do procedimento administrativo e do contencioso administrativo.

Referimos atrás o princípio da subsidiariedade, que agora achamos oportuno aprofundar: dita este princípio, consagrado no artigo 5º/3 do Tratado da UE, que, das atribuições que tanto possam ser exercidas pela UE, como pelos Estados-membros, aquela se limite a exercer as que estes não estejam aptos a concretizar. Por influência do Direito Comunitário, o princípio da subsidiariedade (administrativa) é também transposta para a repartição vertical de poderes entre Estado e entidades infraestaduais beneficiárias de mera descentralização administrativa (mais precisamente, Autarquias Locais), atendendo também ao princípio da descentralização, de modo a permitir a participação na integração das comunidades regionais e locais: esta dimensão interna do princípio da subsidiariedade é prevista pela Carta Europeia da Autonomia Local do Conselho da Europa e pelos artigos 6º/1 e 7º/6 da CRP. No entanto, quando uma norma nacional e uma norma comunitária colidam, prevalece a norma comunitária, por via do primado do Direito da União Europeia (artigo 8º da CRP). É este primado fundamentado pelos princípios acima mencionados, e pela ideia de que cada Estado, ao integrar a UE, aceita e adota a sua Ordem Jurídica, que tem a pretensão de ser um Direito Comum aos Estados-membros da União. O artigo 288º do TFUE (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) estabelece que os Estados-membros ficam adstritos a adotar os atos jurídicos da UE, à exceção de recomendações e pareceres, que não são vinculativos. O mesmo artigo especifica que os regulamentos e as decisões (atos de Direito derivado) são vinculativos e dotados de aplicabilidade direta, enquanto as diretivas vinculam quanto ao objetivo a alcançar, deixando às entidades estaduais a competência quanto à forma e aos meios: esta função é em larga medida exercida pelas Administrações Públicas estaduais. Para além do mais, também o Direito da UE diretamente aplicável terá invariavelmente de ser complementado por medidas de execução, da parte dos Estados-membros: mais uma expressão da colaboração dos Estados-membros, e que vem prevista no artigo 291º do TFUE, bem como na cláusula de empenhamento do artigo 7º/5 da CRP. Por tudo o que vem sendo escrito, afirma o Professor Fausto de Quadros que os Estados formam a “Administração indireta” (instrumental) da União e do seu Direito, visto ser através dos Estados-membros e respetivas instituições que o Direito da UE tem aplicabilidade; as entidades administrativas, por sua vez, são entidades administrativas comunitárias.

Para além de haver autoridades comunitárias que controlam a aplicação dos fundos comunitários, e de também as Administrações Públicas exercerem controlo externo (em Portugal, o Tribunal Geral de Contas fiscaliza a aplicação dos recursos financeiros provenientes da União, constituindo, portanto, um órgão jurisdicional nacional com expressão funcional europeia, como afirma o Professor Afonso d’Oliveira Martins) – como dizíamos, para além deste controlo explícito, há ainda vias informais de europeízação dos Direitos nacionais a que o mesmo Professor chama de “influências silenciosas”, de que foi exemplo a pressão europeia para a desideologização do Direito Público no pós-revolução de Abril.

 

Influência do Direito Europeu nos Direitos Estaduais:

Tal como os Direitos estaduais constituíram uma fonte de Direito em sentido histórico, para a União Europeia, o Direito da União Europeia é fonte de Direito (em sentido técnico-jurídico) para os Estados-membros. O legislador nacional executa o Direito da UE, criando Direito; a Administração Pública aplica o Direito da União Europeia, por via administrativa, incluindo-o no bloco de legalidade que limita a Administração (princípio da legalidade).

Tem havido esforços no sentido de harmonizar os métodos de gestão administrativa e procedimentos administrativos dos Estados, através de diretivas de coordenação de procedimentos administrativos em domínios como o dos contratos públicos, do ambiente, e da liberdade de circulação de pessoas. Criou-se o ato administrativo comunitário, alterou-se o regime de revogação do ato administrativo, alargou-se a categoria do ato administrativo contenciosamente sindicável. Procedeu-se ainda à alteração do sistema de garantias vigente nos Estados-membros em matéria de Direito Administrativo, consagrando no Direito interno garantias que asseguram a efetividade do Direito da UE e dos direitos que ele confere aos cidadãos (nomeadamente, através da possibilidade de os tribunais estaduais adotarem providências cautelares, para impedirem o desrespeito pelas normas comunitárias que atribuam direitos aos particulares não previstos nas Ordens Jurídicas internas), e ainda através da responsabilidade extracontratual do Estado pela violação do Direito Europeu. Os Estados-membros estão ainda obrigados à revogação dos atos administrativos nacionais contrários ao Direito da União.

Os Estados-membros têm, portanto, de conformar os seus Direitos com o Direito Europeu, pela via negativa de não contrariar o Direito da União, e pela via positiva da obrigatoriedade de transpor as diretivas, bem como pelo fenómeno da aproximação das legislações.

 

Contexto histórico:

Como inicialmente referimos, à europeízação dos Direitos internos e, nomeadamente, do Direito Administrativo, pode-se apontar motivos históricos. Como menciona o Professor Afonso d’Oliveira Martins, ao objetivo primeiro da integração económica, pela Comunidade Económica, seguiu-se, pelo advento do Estado Social de Direito, um alargamento dos objetivos comuns, e, nomeadamente, a vontade por parte dos Estados europeus que foram integrando a depois chamada União Europeia de alargar o âmbito da UE à dimensão política (e administrativa) e, como não poderia deixar de ser, à jurídica, para regular esta integração e os meios para atingir os fins propostos pela Comunidade. As preocupações da União Europeia começaram a incidir sobre domínios das Administrações Públicas nacionais (ambiente, educação, cooperação para o desenvolvimento,... - em suma, o interesse coletivo). O Professor Sabino Cassese indica que inicialmente a Comunidade Europeia não tinha a pretensão de interferir nas Administrações estaduais, mas que, com o alargamento das tarefas da União e necessidade de eficácia na sua execução, as Administrações estaduais foram sendo transformadas em Administrações europeias. Foi através deste processo que a Administração, inicialmente altamente dependente do Estado e até confundível consigo, foi perdendo essa exclusividade, por via de fenómenos de coadministração e de soberania condividida.

Para além do mais, ainda antes da adesão de Portugal à União Europeia, já Marcello Caetano observava que havia uma tendência para a harmonização das Ordens Jurídicas dos Estados europeus, com um progressivo esbatimento das diferenças entre os sistemas jurídicos (e, em especial, jurídico-administrativos) dos Estados europeus. João Caupers, mais recentemente, confirma esse esbatimento, nomeadamente entre os sistemas de Administração executiva e judiciária. Adota também esta posição o Professor Vasco Pereira da Silva, ao fazer notar a progressiva aproximação dos modelos de Direito Administrativo, respetivamente, francês e britânico. Afirma o Professor Vasco Pereira da Silva que esta aproximação entre os ordenamento jurídicos nacionais se dá a nível substantivo, procedimental e processual.

 

Bibliografia Consultada:

  • CAUPERS, João, Direito Administrativo I - Guia de Estudo, 4ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, Lisboa, 1999.
  • D'OLIVEIRA MARTINS, Afonso, A Europeização do Direito Administrativo Português, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II, 2001, pp. 999 ss.
  • FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 1994.
  • PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Coimbra, Almedina, 2005.
  • QUADROS, Fausto de, A Nova Dimensão do Direito Administrativo – o Direito Administrativo português na perspetiva comunitária, Coimbra, Almedina, 2001.
  • QUADROS, Fausto de , Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia,3ª ed., Coimbra, Almedina, 2013.
  • OTERO, Paulo, A Administração Pública nacional como Administração Comunitária, in Estudos em Homenagem a Isabel de Magalhães de Collaço, Coimbra, vol. I, pp. 817 ss.

 

Beatriz de Macedo Vitorino

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