Discricionariedade administrativa
1) A posição clássica, marcada pelo entendimento liberal da legalidade e da separação de poderes e defendida em Portugal pelo Professor Marcello Caetano, era a de que os atos vinculados se distinguiriam dos atos discricionários, correspondendo esta discricionariedade a um espaço livre de Direito, o que implicava que os tribunais não poderiam intervir neste âmbito de "liberdade de decisão" da Administração: um ato discricionário seria, portanto, uma exceção ao princípio da legalidade e não poderia ser jurisdicionalmente controlado.
2) O Professor Freitas do Amaral veio, entretanto, defender que a discricionariedade não é uma exceção ao princípio da legalidade e que não há atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários, todos tendo ambas as facetas ("mistura ou combinação"), apenas sendo possível perguntar em que medida cada ato é discricionário ou vinculado. Afirma este Autor que cada ato tem, sempre, pelo menos dois elementos vinculados por lei - a competência e o fim. Assim, do seu ponto de vista, essa distinção apenas deveria fazer-se a nível dos poderes (poder discricionário e poder vinculado). O Professor Freitas do Amaral defendeu também que os poderes discricionários não poderiam ser controlados pelos tribunais, mas que todos os aspetos vinculados dos atos sim (e portanto todos os atos seriam sujeitos a controlo, nos seus aspetos vinculados).
3) Nos anos 80, o Professor Sérvulo Correia, por sua vez, partindo de uma distinção conhecida do Direito Alemão, veio distinguir duas modalidades de discricionariedade:
- Margem de livre apreciação: no exercício de um poder, poderia a Administração ter esta margem de apreciação, antes ainda da decisão final,ao nível da subsunção dos factos à norma.
- Margem de livre decisão: é a discricionariedade em sentido clássico e corresponderia, no entendimento do Professor, à possibilidade de proceder à decisão final.
Por último e em jeito de conclusão, o Professor Vasco Pereira da Silva entende que, tendo em conta tudo quanto se disse, os tribunais controlam integralmente o poder vinculado e os vínculos do exercício do poder discricionário. O Professor Vasco Pereira da Silva entende que todos os aspetos de um poder, quer sejam vinculados, quer discricionários, estão sujeitos a controlo jurisdicional, pois que todos esses aspetos estão subordinados ao Direito, apenas concedendo que o controlo jurisdicional será mais forte consoante vá aumentando a medida de vinculatividade de um poder. Para compreendermos melhor a posição do Professor Vasco Pereira da Silva quanto ao controlo jurisdicional a que está sujeita a Administração no exercício de poderes (predominantemente) administrativos, importa conhecer as opiniões atuais de alguns Autores quanto ao mesmo problema.
Vejamos, então, sucintamente, o que entende hoje o Professor Diogo Freitas do Amaral por poder discricionário da Administração. Segundo o Autor, o poder é discricionário quando o seu exercício fique entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere. Entende, portanto, que o poder discricionário não é livre, estando a escolha não apenas vinculada pela competência e pelo fim, mas também, e sobretudo, por ditames decorrentes dos princípios e regras gerais que vinculam a Administração, o que implica que o órgão administrativo fica obrigado a encontrar, de entre as escolhas possíveis, aquela que se consubstancia na melhor solução para o interesse público (na linha de pensamento de Engisch, considera que, de entre as várias escolhas legais possíveis, há um resultado que é o "único ajustado" às circunstâncias do caso concreto). O Professor Freitas do Amaral entende, hoje, portanto, que o poder discricionário não é um poder livre dentro dos limites da lei, mas sim um poder jurídico delimitado pela lei.
O Professor Freitas do Amaral considera também, hodiernamente, que a maioria dos poderes têm simultaneamente aspetos vinculados e discricionários (o que não corresponde, ainda, à posição do Professor Vasco Pereira da Silva, mas é sem dúvida mais próxima do que outrora). Desenvolve o Professor Freitas do Amaral que nos poderes com aspetos vinculados e discricionários, os aspetos vinculados estão sujeitos a controlo de legalidade, pelo seu exercício ilegal, e os discricionários a controlo de mérito, pelo seu mau uso. Ou seja, defende que, em rigor, não há controlo jurisdicional do poder discricionário, mas antes controlo administrativo de mérito sobre o bom ou mau uso do poder, e controlo jurisdicional de legalidade dos aspetos vinculados dos poderes (predominantemente) discricionários. Relativamente ao controlo do mérito, afirmam os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos que este engloba a apreciação da oportunidade (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público visado pelo poder legalmente conferido por lei) e da conveniência (utilidade da atuação em concreto para a prossecução do interesse público, à luz dos demais interesses públicos envolvidos), o que, de acordo com o artigo 3.º/1 do CPTA, os tribunais administrativos não têm competência para julgar. Estes Professores concordam, como referido supra, que a separação de poderes implica a ausência de controlo jurisdicional da margem de discricionariedade da Administração, pois, no seu entender, a atribuição de um poder (predominantemente) discricionário a um órgão administrativo corresponde a um juízo do legislador, segundo o qual o interesse público em causa seria melhor prosseguido pela Administração do que pelo próprio legislador ou pelos tribunais.
Retomando a posição defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva, podemos agora afirmar que esta se aproxima daquela defendida pelo Professor Freitas do Amaral, no que respeita aos vínculos que limitam toda a atividade Administrativa (não se excluindo, portanto, a discricionária). De facto, estes Professores concordam que, hoje, os poderes discricionários não são apenas sujeitos a controlo jurisdicional quanto ao fim e competência, como também, em virtude do alargamento do entendimento da legalidade, quanto aos princípios gerais da Administração Pública, quer os constantes da Constituição (artigo 266.º), quer quanto aos constantes no CPA e legislação avulsa. Estes princípios são vínculos autónomos, não surgindo da circunstância concreta de existência de um poder discricionário específico.
No artigo 266.º da CRP, encontramos referência aos seguintes princípios:
- Princípio da imparcialidade
- Princípio da igualdade
- Princípio da proporcionalidade
- Princípio da boa fé
- Princípio da justiça
O princípio da proporcionalidade, a que está sujeita a Administração, é particularmente expressivo do alargamento da aceção da legalidade e consequente reforço do controlo jurisdicional a que estão sujeitos os poderes discricionários. Isto porquê? Porque, controlando a necessidade, a adequação e o não prejuízo excessivo, acaba-se controlando o próprio modo como o poder discricionário é exercido. Se uma decisão for desnecessária, essa decisão é ilegal e como tal pode ser conhecida de um tribunal. Significa isto que a necessidade e adequação deixam de ser problemas de mérito e transformam-se em problemas de legalidade.
Também o princípio da justiça releva em sede de discricionariedade, pois permite considerar ilegal uma decisão materialmente injusta, quer se trate de uma decisão realizada no âmbito de poderes vinculados, quer discricionários.
Artigos relevantes: 266.º/2 CRP; 3.º/1 e 4.º CPA; 3.º/1, 71.º/2 e 95.º/3 CPTA
Normas que atribuidoras de poderes discricionários (enumeração exemplificativa): artigos 3.º/2, 145.º/3, 100.º/2, 157.º/1, 174.º/2 CPA; art. 8.º DL n.º 252/92, de 19 de Novembro.
Jurisprudência:
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- http://www.contratacaopublica.com.pt/jurisprudencia/portuguesa/tribunais-administrativos/Acordao-do-Tribunal-Central-Administrativo-Norte-de-2-de-marco-de-2012-proc-106411/813/
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Bibliografia:
- CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, pp. 28 - 31, 213 - 216;
- FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2.ª ed., 2013, Almedina, Coimbra, pp. 50 - 69, 84 - 128;
- QUEIRÓ, Afonso, O Poder Discricionário da Administração, 2.ª ed., 1948, Coimbra Editora;
- REBELO DE SOUSA, Marcelo, SALGADO DE MATOS, André, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª ed., Dom Quixote, pp. 159 - 232;
- (1) SALAZAR LEITE, Maria Madalena, Tertúlias na Sala do Acto Administrativo
- BALKIN, Jack, LEVINSON, Stanford, Law, Music and Other Performing Arts, 1991
Beatriz de Macedo Vitorino
Aluna Nr. 28191