Simulação de julgamento: Defesa da junta de freguesia
Exmo. Senhores Drs. Juízes de Direito
Do Tribunal Administrativo do 2º Ano, Turma B, Subturma 10
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
FÁBIO SEM TERRA, cidadão com CC nº XXXX, NIF YYYY, em colaboração com os moradores da Junta de Freguesia de Carnitas, Listejo, vem pela presente petição inicial propor ação de impugnação de ato administrativo, nos termos dos artigos 50º e ss. do CPTA, e providência cautelar, nos termos do artigo 182º, nº3, do CPA, contra CÂMARA MUNICIPAL DE LISTEJO, com em sede em ZZZZZ, Listejo, e EMULTA – Empresa Municipal de Parques de Estacionamento, com sede em Listejo, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
I – DOS FACTOS
1º
O Autor é Presidente da Junta de Freguesia de Carnitas, em Listejo.
2º
Os moradores da freguesia de Carnitas alertaram, várias vezes ao longo dos últimos anos, para o agravamento da situação do estacionamento nesta zona, sobretudo no centro histórico.
3º
Para dar resposta positiva a esses alertas, o Autor celebrara um acordo com a primeira Ré, na pessoa de Francisco Filão, Presidente da Câmara Municipal de Listejo, no qual esta se comprometeu a requalificar o centro histórico e a construir parques de estacionamento para a zona em questão.
4º
No passado dia 31 (trinta e um) de março, a segunda Ré, por indicação da primeira, procedeu à instalação de parquímetros na zona histórica da autarquia.
5º
Isto apesar de, até à data, os compromissos assumidos nesse acordo não terem sido cumpridos.
6º
Ora, no passado dia 1 (um) de abril, um grupo de moradores de Carnitas, liderado pelo Autor, procedeu à retirada dos parquímetros instalados na zona do centro histórico da autarquia.
7º
Os parquímetros ficaram guardados para serem devolvidos à segunda Ré, na sede da Junta de Freguesia.
8º
Porém, os parquímetros acabaram por ter sido confiscados pela PSP.
9º
No dia seguinte, a segunda Ré, na pessoa de Penélope Filão, Presidente do Conselho de Administração, e esposa de Francisco Filão, Presidente da Câmara Municipal de Listejo, ordenou a imediata recolocação dos parquímetros.
10º
Ao mesmo tempo, ordenou a Polícia Municipal «que repusesse e velasse pela manutenção da ordem pública na freguesia».
11º
Ora, o Autor, na sequência de uma reunião com os moradores de Carnitas, solicitou uma audiência urgente ao Presidente da Câmara para entregar um abaixo-assinado da população contra a instalação dos parquímetros.
12º
O Autor pretende também reagir contra a recolocação forçada dos parquímetros por ação da Polícia Municipal e obrigar a primeira Ré a cumprir os seus compromissos relativos à requalificação do centro histórico e à construção de parques de estacionamento.
II – DOS FUNDAMENTOS DE DIREITO
A) Da audiência de interessados
13º
Os moradores de Carnitas, estando sujeitos à instalação dos parquímetros nessa zona, são interessados no procedimento (artigo 68º/1 CPA), pelo que são sujeitos da relação jurídica procedimental (artigo 65º/1 CPA).
14º
Não houve audiência prévia dos interessados para o ato de instalação dos parquímetros em Carnitas.
15º
A audiência prévia dos interessados é uma das fases do procedimento administrativo, consagrada nos artigos 80º, 100º e 121º e ss. CPA, e onde os interessados têm “o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final” (artigo 121º, nº1, CPA).
16º
Não se prevê quaisquer das situações dispostas no nº1 do artigo 124º CPA, pelo que não é admissível qualquer dispensa de audiência dos interessados.
17º
A audiência dos interessados decorre dos princípios da colaboração com os particulares e da participação (artigos 11º e 12º CPA), bem como do princípio da democracia participativa, consagrados no artigo 2º CRP.
18º
Consagra ainda o artigo 267º, nº5, CRP, que “O processamento da actividade administrativa (…) assegurará (…) a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito”.
19º
Tendo em conta a sua consagração na Constituição, lei fundamental, e a relevância desta fase para o procedimento, o direito de audiência prévia dos interessados deve ser interpretado como um direito fundamental.
20º
Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, como o direito de audiência prévia dos interessados, são nulos (artigo 161º, nº2, alínea d), CPA), pelo que não produzem quaisquer efeitos (artigo 162º, nº1, CPA).
B) Do dever de auxílio administrativo
21º
Pelo princípio da legalidade (artigo 3º CPA), os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao Direito, dentro dos limites dos poderes que lhes foram conferidos em conformidade com os respetivos fins a alcançar.
22º
Nos termos do artigo 33º, nº1, alínea rr), da Lei nº 75/2013, de 12 de setembro, doravante denominada Lei das Autarquais Locais (LAL), compete à câmara municipal deliberar sobre o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos.
23º
Não obstante, as freguesias dispõem de atribuições nos domínios do ordenamento e do equipamento urbano, nos termos do disposto no artigo 7º, nº2, alíneas a) e j), LAL.
23º
Deve-se ainda conjugar com a Lei nº 56/2012, referente à Reorganização Administrativa de Lisboa, cujo artigo 12º, nº1, alínea g), consagra que é da competência própria das juntas de freguesia: “Atribuir licenças de utilização/ocupação da via pública (…)”.
24º
Por argumento de identidade de razão, parece-nos razoável a aplicação analógica da Lei nº 56/2012 ao município de Listejo.
25º
Portanto, o parqueamento urbano engloba-se tanto nas competências do município como nas atribuições e competências da junta de freguesia.
26º
Deste modo, parece-nos que haveria um dever da primeira Ré solicitar o auxílio da junta de freguesia de Carnitas, através da figura do auxílio administrativo, que consta no artigo 66º CPA.
27º
O dever de solicitar auxílio administrativo revela-se, neste caso, como uma exigência do princípio da boa fé, do qual decorrem deveres acessórios de lealdade, informação e proteção.
28º
Deveres esses que não foram respeitados, na medida em que a junta de freguesia não foi devidamente informada acerca da instalação dos parquímetros, matéria sobre a qual apresenta competências próprias que decorrem da lei.
C) Da exceção de não cumprimento no contrato interadministrativo
29º
O acordo celebrado entre o Autor e a primeira Ré consiste num contrato interadministrativo, visto que se trata de um acordo de vontades que tem por fim gerar obrigações recíprocas entre dois entes públicos.
30º
Neste caso, o município obriga-se a requalificar a zona histórica e a criar novos parques de estacionamento, enquanto a junta de freguesia fica obrigada a permitir a instalação de parquímetros nessa zona.
31º
Os contratos interadministrativos encontram-se regulados no artigo 338º CCP, sendo que o seu nº1 estabelece que o regime substantivo dos contratos administrativos não se aplica aos contraentes que se contratem em posição jurídica paritária e seguindo uma ótica de harmonização do desempenho das respetivas atribuições.
32º
Ora, já se sabe que, em matéria de parqueamento urbano, tanto a junta de freguesia como o município têm atribuições e competências nessa área (cf. pontos 22º, 23º, 24º e 25º da presente petição inicial).
33º
No contrato celebrado entre o Autor e a primeira Ré, estamos, portanto, perante uma situação de bilateralidade e paridade jurídica – existência de obrigações recíprocas entre os dois entes públicos – e em que há uma tentativa de harmonização das atribuições dos órgãos em matéria de parqueamento urbano.
34º
Todavia, seguimos o entendimento que alguns institutos jurídicos do regime substantivo dos contratos administrativos também se aplicam aos contratos interadministrativos entre contraentes em situação de paridade jurídica, como é o caso da exceção de não cumprimento (neste sentido, cf. ALEXANDRA LEITÃO, Lições de Direito dos Contratos Públicos, Parte Geral, AAFDL, 2014).
35º
Nos contratos de cooperação partidária, a exceção ao não cumprimento do contrato pode ser invocada por todos os contraentes, pois a sua aplicação não depende de quem são as partes, mas sim da natureza sinalagmática do contrato.
36º
A exceção de não cumprimento encontra-se regulada nos artigos 327º CCP e 428º CC, de onde se retiram os seguintes pressupostos: i) bilateralidade do contrato; ii) prazos idênticos para as obrigações; iii) a recusa em cumprir não implica grave prejuízo para a realização do interesse público.
37º
Não há dúvidas de que o primeiro pressuposto se encontra preenchido, como já foi supra mencionado (cf. pontos 29º, 30º e 33º).
38º
A existência de prazos diferentes é limite “apenas ao contraente que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar, continuando a ser admissível para o outro o recurso à excepção de não cumprimento” (cf. Acórdão do STJ, de 22-01-2013: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b6bf335b22c7233c80257afd004ee70f?OpenDocument).
39º
No presente caso, foi a Ré que primeiramente se comprometeu a restaurar o centro histórico e a construir parques de estacionamento na zona.
40º
Logo, encontra-se igualmente preenchido o segundo pressuposto, que decorre do artigo 428º, nº1, CC.
41º
Por fim, a recusa em aceitar a implementação de parquímetros em Carnitas não causa prejuízo à prossecução do interesse público.
42º
Isto porque, neste caso, o interesse público subjacente à instalação de parquímetros corresponde, sobretudo, ao interesse dos moradores da junta de freguesia de Carnitas em terem a situação do estacionamento nessa área mais regularizada.
43º
E, como se verificou através da ação popular, é do interesse geral dos moradores e dos comerciantes de Carnitas que não sejam instalados parquímetros na autarquia antes de ser feita a restauração do seu centro histórico e de serem criados parques de estacionamento.
44º
O princípio da prossecução do interesse público decorre dos artigos 266º, nº1, CRP e 4º CPA e constitui "o verdadeiro fio condutor da actividade administrativa pública" (cfr. JOÃO CAUPERS, Introdução Ao Direito Administrativo, 11ª edição).
45º
Decorre ainda do nº 1 do artigo 235º CRP que as “autarquias locais (…) visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
46º
Logo, cabe à junta e ao município, em primeiro lugar, garantir e satisfazer as necessidades coletivas que as respetivas populações sintam.
47º
O que, neste caso, não se verifica com a instalação dos parquímetros, visto que nem os próprios moradores aceitam a antecipação da sua implementação. E é o interesse dos moradores que deve ser tido em principal consideração.
48º
Portanto, o incumprimento da obrigação de acatar a instalação dos parquímetros não gera nenhum prejuízo para a prossecução do interesse público, estando assim verificado o terceiro requisito.
49º
Logo, pode a junta de freguesia recusar-se a aceitar a instalação de parquímetros, com base na exceção de não cumprimento do contrato (artigos 327º, nº1, CCP e 428º, nº1, CC).
50º
A primeira Ré está, portanto, obrigada à requalificação do centro histórico da autarquia e à construção de parques de estacionamento nessa zona.
D) Do direito de resistência, ação direta e de ação popular
51º
O uso da força, para afastar ou impedir a produção de efeitos em ordens que ofendam direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos, pode ser legitimado com base no direito de resistência, consagrado no artigo 21º CRP.
52º
A ordem de instalação dos parquímetros ofende diversos direitos e interesses dos moradores de Carnitas, nomeadamente o direito de audiência prévia dos interessados, como já foi supra mencionado (cfr. pontos 13º e ss.).
53º
Outro meio legítimo de auto-tutela é o de ação direta, cujo regime se encontra no artigo 336º CC e se pode aplicar por analogia à presente situação, seguindo um argumento de identidade de razão.
54º
De facto, estão verificados os requisitos que constam do artigo 336º, nº1, CC, para a ação direta: i) recurso à força; ii) fim de assegurar um direito (ou interesse) próprio; iii) impossibilidade de recorrer em tempo útil à hetero-tutela, de modo a evitar inutilidade prática do direito; iv) proporcionalidade entre o direito a proteger e o dano ou prejuízo causado.
55º
O Autor e os moradores da autarquia recorreram à força, retirando os parquímetros, de modo a assegurarem os seus direitos e interesses legalmente protegidos, sejam eles o direito de audiência prévia dos interessados ou o direito de a primeira Ré cumprir primeiramente com os seus compromissos.
56º
Além disso, recorrer à hetero-tutela não traria efeito útil à proteção dos direitos supra mencionados, pois os meios coercivos normais poderiam agir tarde de mais ou poderiam implicar custos desnecessários aos interessados.
57º
Por fim, há adequação entre o direito a assegurar e o dano causado, pois os parquímetros foram arrancados com o intuito de serem devolvidos à segunda Ré, encontrando-se em bom estado, sem qualquer sinal de deterioração.
58º
Consideramos, portanto, lícito o comportamento do Autor e dos moradores, visto que se insere no âmbito da ação direta, um meio legítimo de auto-tutela.
59º
A Constituição consagra ainda, no seu artigo 52º, nº3, o direito de ação popular: um direito fundamental de tutela de interesses transindividuais, de uma totalidade de titulares, para fins diversos.
60º
Alguns desses fins encontram-se elencados no artigo 1º, nº2, da Lei nº 83/95, de 31 de agosto (doravante Lei do Direito de Ação Popular, LAP), sendo de destacar, no presente caso, a proteção da qualidade de vida e do domínio público, bem como a defesa da autarquia local.
61º
Nos termos do artigo 2º, nº1, LAP, “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos” são titulares do direito de ação popular.
62º
O artigo 12º, nº1, LAP remete as formas de ação popular administrativa, neste caso, para o artigo 9º, nº2, CPTA, que prevê a ação popular administrativa genérica, segundo a qual “qualquer pessoa, bem como (…) as autarquias locais (…) têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como (…) o urbanismo (…) e os bens do Estado, (…) e das autarquias locais”.
63º
Portanto, é legítima esta ação popular de impugnação de atos administrativos lesivos de direitos e interesses coletivos.
E) Da imparcialidade e incompetência da segunda Ré
64º
O artigo 9º CPA consagra o princípio da imparcialidade, segundo o qual a Administração Pública deve adotar soluções procedimentais que preservem a isenção administrativa e a confiança nessa isenção.
65º
Os titulares de órgãos da Administração Pública não podem intervir em procedimento ou ato administrativo quando nele tenha interesse o seu cônjuge, segundo o artigo 69º, nº1, alínea b), CPA.
66º
Ora, foi exatamente isso que aconteceu quando Penélope Filião, esposa do Presidente da Câmara e Presidente do Conselho de Administração da EMULTA, segunda Ré, ordenou a imediata recolocação dos parquímetros.
67º
O nosso ordenamento jurídico não admite situações de promiscuidade e de ausência de imparcialidade como a que ocorreu, pelo que este ato onde interveio Penélope Filião deve ser anulado, nos termos do artigo 76º, nº1, CPA.
68º
Mais ainda, a segunda Ré não tem atribuições no domínio da Polícia municipal, pelo que a Presidente do Conselho de Administração não lhes pode dar ordens.
69º
Quem dispõe de atribuições nesse domínio é o Município, nos termos do artigo 23º, nº2, alínea o), LAL.
70º
Portanto, é nula a ordem à Polícia Municipal, por vício de incompetência absoluta da EMULTA nesse domínio, nos termos do artigo 161º, nº2, alínea b), CPA.
III – DO VALOR DA CAUSA
Valor: X milhares de euros
IV – DA PROVA TESTEMUNHAL
[inserir moradores da junta de Freguesia de Carnitas]
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a presente ação ser julgada procedente por provada.
Os Advogados
Joana Luís Gonçalves – nº 28204
Joana Melo – nº 28533
João Pinto Ramos – nº 28375
Ricardo Cunha – nº 26744
2º Ano, Turma B, Subturma 10
Ano Letivo 2016/2017